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Vivo e Assim Conheço

O pé mal posto na banheira fê-lo escorregar. Caleb conseguiu impedir que caísse, mas os gestos involuntários de usar a mão para se segurar no lavatório e empurrar a outra perna contra a banheira do lado de fora para se manter em pé atiçou-lhe dores familiares na zona abdominal. O medo consequente deixou-lhe a respiração entrecortada. O corpo ficou gelado. Os dedos enregelados atrapalharam-se a abrir a torneira já por si perra. Quando, por fim, sentiu a água quente a escorrer-lhe pelas costas, soltou um longo suspiro de alívio. Só então é que Caleb pôde fazer o esforço consciente de respirar mais fundo e mais devagar para restabelecer o equilíbrio. Ao secar com a toalha, já se censurava por ter imaginado o pior.

– Acabaste de comer e aquele movimento repentino para não caíres deve ter-te magoado o estômago. Escusas de pensar que foi o cancro que regressou. – E com aquilo esfregou o cabelo molhado vigorosamente com a toalha. A casa-de-banho era pequena: podia estender o braço e tocar na sanita à sua frente, no lavatório à direita, na banheira atrás de si e na porta à esquerda. Toda a divisão era branca – a parede, a loiça e as toalhas – o que até realçava o espaço asseado. Mas naquele instante, fazia-o sentir-se aprisionado. E o quarto não era muito maior. Vibrava em tons de azul e verde, onde só cabia uma cama de solteiro, uma janela e uma cómoda, restando apenas espaço suficiente para chegar à porta. Nesse espaço, Caleb vestiu-se. Tirou uma camisola quente da mala de viagem, que estava em cima da cómoda. Calçou-se.

Rolou a maçaneta da porta vagarosamente e pôs-se à escuta. Havia uma conversa no corredor e reconheceu a voz do gerente do hotel. O homem continuava a pregar a conversa de não se puder sair do hotel à noite a outros hóspedes. Enfadados, eles – parecia ser um casal – questionavam o gerente. Caleb continuou a escutá-los, mas depois do gerente entrar no quarto, só percebeu palavras como “lua cheia”, “sereia” e “mortes”. Abanou a cabeça. Fechou suavemente a porta atrás de si e apressou-se a ir na direcção oposta: no fundo do corredor, havia uma janela com acesso a uma escada de incêndio. Se o gerente achava que ele ia ficar confinado àquele quarto minúsculo por causa de um canto mortal de uma criatura que nem sequer existia, então estava muito enganado. Destrancou a janela, era daquelas que abria na vertical. Puxou-a para cima. A bufada de ar fresco da noite foi doce.

Ouviu a porta a ser aberta. A voz do gerente tornou-se mais clara. Caleb apressou-se a passar pela janela. Virou-se para a fechar, mas o gerente estava prestes a virar-se. Se o fizesse, vê-lo-ia. Apenas teve o discernimento de esconder-se por baixo do parapeito da janela e esperou. Um som abrupto e arrastado da janela a ser fechada assustou-o. Caleb espreitou; não havia ninguém no corredor. Tentou abrir a janela, mas não conseguiu. Maldisse o homem e a sua sereia fantasiosa com os dentes cerrados.

Desceu os primeiros degraus e as escadas de incêndio vibraram debaixo dele. Caleb engoliu em seco e obrigou-se a descer outro degrau, outro lance, outro andar. A meio da descida, o quarto já não lhe parecia tão pequeno e censurou-se pela precipitação. Teve de gatinhar para que o pessoal do hotel não o visse pela janela nos últimos dois andares. Já se congratulava pela escapadela bem-sucedida, já a meio do último lance de escadas, quando a porta das traseiras do hotel se abriu.

Caleb paralisou de imediato nas escadas. Era uma empregada das limpezas a carregar sacos pretos do lixo. Resmungava por entredentes. Atirou com os sacos para dentro do caixote e marchou de volta para dentro do hotel, fechando a porta com estrondo atrás de si. Caleb foi percorrido por um arrepio de excitação. Mas tinha de se despachar ou ainda seria apanhado. Se ao menos não tivesse as pernas feitas em gelatina que o faziam parecer um velho acamado que tentava andar, resmungou para si próprio. Não havia outra fonte de luz artificial para além do candeeiro sobre a porta das traseiras. Felizmente, o luar estava intenso o suficiente para Caleb avançar no escuro beco sem andar às palpadelas. O mais estranho foi encontrar o resto da vila mergulhada na escuridão.

Não havia música ao vivo para acompanhar aquela noite quente de Setembro. Não havia sinais de restaurantes cheios ou bares ocupados. Não se ouvia risos ou copos a tirlintar em brindes. Não havia pessoas a passear em família, casais de mão dada ou crianças a rir e a correr sem uma única preocupação do mundo, senão a de correr mais depressa ou a de gritar mais alto. Caleb arrepiou-se. Parecia uma vila fantasma.

Acompanhou a estrada principal até sair do centro da vila, em direcção ao acesso mais próximo da praia. Uma vez lá, Caleb parou no passadiço de madeira, mesmo há entrada na praia. Dali podia ver toda a extensão de areia acinzentada que se estendia à sua esquerda até curvar e terminar em rochas que escalavam numa extensa face escarpada. À sua direita, estava o limite de propriedades privadas à beira-mar.

Descalçou-se; queria sentir a areia nos pés. Descia a meia dúzia de degraus de madeira gasta e ressequida, quando deu outro passo mal dado. As dores no abdómen atiçaram-se, fazendo-o encolher-se sobre a barriga. Sentou-se no degrau para recuperar. Ao ver que, desta vez, as dores não passavam, levou a mão ao bolso, tirou uma placa de comprimidos analgésicos e tomou dois a seco. Só está magoado, só está magoado, repetia a si mesmo, baixinho, como um embalo para controlar os dedos frios do medo. Foi quando um vulto ao longe chamou-lhe a atenção.

Parecia estar à beira da água e arrastava-se para a areia. Depois de ver aquela vila sem vivalma, só havia uma conclusão lógica: aquela pessoa tinha de estar em apuros. Caleb levantou-se, as dores intensificaram-se, obrigando-o a sentar-se de novo. Agora tinha a respiração entrecortada. Olhou em frente, viu o vulto. Fechou os olhos, sentiu as dores. Cerrou os dentes, abriu os olhos e voltou a levantar-se. Viu que se aguentava em pé e deu um passo. E depois outro. O vulto estendeu-se na areia; a Caleb parecia que estava meio dentro, meio fora da água que devia estar gelada. O que lhe terá acontecido? Viu o vulto encolher-se numa posição fetal. Um pouco mais próximo, conseguiu perceber os contornos do cabelo comprimido e da cintura feminina. Quando estava a uns três metros dela, parou. A mulher permaneceu quieta.

– Ei, senhora! – Tossicou para soltar a voz. – Senhora! A senhora está bem?

Havia qualquer coisa enfaixada no tronco. As pernas estavam negras, mas brilhavam ao luar. Devia ser um efeito das calças. Foi-se aproximando.

– Senhora. Senhora. – Continuou ele a chamar. – Está ferida? Precisa de… – O movimento súbito dela para o olhar assustou-o e paralisou-o onde estava. A mulher sentou-se. O peito estava estranhamente escondido por uma faixa de tecido enrolado no tronco. Fitava-o com uma expressão cautelosa, avaliadora. Ou seria receosa? O luar pregava partidas.

– A senhora está bem? – Voltou ele a perguntar. A mulher apenas lançou olhares rápidos em direcção ao mar.

– Não foi a minha intenção assustá-la. Vi-a ao longe e pensei que precisasse de ajuda.

– Deixa-me em paz! – A exigência apanhou Caleb desprevenido.

– Não quis assustá-la. – Repetiu. Calou-se ao ver o cabelo, tão comprido que lhe chegava à cintura, a agitar-se. Contudo, não havia vento e a mulher estava quieta, bem quieta à sua frente. Um movimento das pernas atraiu-lhe o olhar. Fitou uma barbatana enorme. A boca abriu-se-lhe de espanto. O que pensara ser um par de calças pretas com efeitos brilhantes era na verdade uma poderosa cauda revestida de escamas que brilhavam sob o luar.

Caleb deu um passo para trás.

– Eu não acredito… – A sereia aproveitou esse instante e atirou-lhe com areia para a cara. Instintivamente, Caleb encolheu-se e apressou-se a sacudi-la, o que deu tempo à sereia para rebolar até à água e desaparecer. Fitou o mar de boca aberta. O que é que tinha acabado de acontecer?

Não suportando mais estar em pé por causa das dores, Caleb deixou-se cair na areia. Como o abdómen ainda lhe doía, descartou a hipótese de os comprimidos terem-lhe causado alucinações. Teria, no entanto, de esperar que começassem a fazer efeito para regressar ao hotel. E no silêncio em que permaneceu, ao sabor do rebentar calmo das ondas, focou-se no que tinha acabado de ver para não pensar o que aqueles dores pareciam implicar.

Estava há uma semana naquela ilha. Reviu cada dia: o que viu, o que ouviu, o que lhe foi dito. Mas nada apontava que existisse de facto uma sereia. Esfregou as mãos na cara. Sacudiu mais areia que teimava em agarrar-se à pele. Será que os locais também a viam e era por isso que havia o recolher obrigatório durante os dias de lua cheia? Ou era tudo farsa para o turismo? E recusava sentir-se estúpido: lá porque aquela ilha era conhecida como a Ilha da Sereia, ele não tinha de deduzir que existia mesmo semelhante criatura.

E agora? Deitou-se na areia com um suspiro cansado. Ao contrário do ambiente citadino a que estava habituado, ali não havia poluição luminosa e Caleb deslumbrou-se com a imensidão do céu estrelado. Os olhos encheram-se de lágrimas de gratidão. Estava vivo para fugir de um hotel à socapa – quem diria, ele a fazer uma coisa daquelas – para depois ver uma sereia – real! – e aquele céu infinito. Agora? Caleb sorriu. Agora, podia usar o facto de ainda estar vivo e procurar a sereia. Depois o sorriso morreu. Céus, será que o gerente tinha razão do canto dela ser mortal?

Caleb acordou exasperado a coçar o nariz. Ao ouvir o som de gaivotas sobre ele, franziu a testa e abriu os olhos. A senhora rechonchuda da pequena mercearia da vila estava com a cara muito próxima do rosto dele e o seu olhar brilhava de horror e surpresa.

– Você passou a noite aqui?! – Entorpecido, Caleb levantou-se lentamente. Esfregou e pestanejou os olhos para se habituarem à claridade. Olhou em redor e depois para a mulher. Estava lixado.

Um perfume adocicado, que presumiu ser dela, provocou-lhe mais comichão no nariz. As meias e os sapatos estavam ao lado dele, espalhados como se alguém os tivesse atirado. O tinir de alguns trocos fê-lo virar-se para um homem que nunca tinha visto antes. Parecia divertido.

– Talvez seja melhor ser visto por um médico. – Disse a senhora da mercearia ao seu lado. Os trocos tiniram novamente.

– Não. – A voz saiu-lhe rouca. Tossicou para clareá-la. – Eu estou bem. Nada que uma chávena de chá não resolva. – Caleb sentou-se a custo. Mexeu os dedos e sentiu as articulações presas e os músculos rígidos. Pegou nas meias e nos sapatos. Com uma das meias, sacudiu toscamente a areia dos pés que, para seu horror, tinham um aspecto um pouco azulado. Com um movimento semiconsciente, levantou o antebraço e voltou a coçar o nariz.

– Passou a noite ao relento! Não pode estar bem!

– Vá lá, querida, a noite também não foi assim tão má. Mas ir ao medico é sensato. – Acrescentou rapidamente, calando a mulher que já se virava para ele com uma expressão furiosa. Voltou a mexer nos trocos, divertido. Caleb levantou-se e deu logo um passo para o lado para fugir ao perfume adocicado.

Começou a sacudir a roupa com movimentos bruscos e irritados. Tinha adormecido! Como se só agora consciencializasse do quão gelado estava, o corpo dele começou a tremer, o que acordou as dores abdominais. Chávena de chá e comprimidos para as dores, pensou cada vez mais mal-humorado. Apanhou a senhora da mercearia a observá-lo atentamente.

– Não parece estar com boa cara…

– Uma chávena de chá bem quente e fico como novo. – E tentou fazer o sorriso mais carinhoso que conseguiu, o mesmo que dava à mãe quando se preocupava demais. Porém, não surtiu o efeito desejado. A senhora da mercearia comprimiu os lábios ao avaliá-lo de cima a abaixo, retendo os tremores de frio que Caleb não conseguia esconder. Sem cerimónias, a mulher aproximou-se e começou a sacudir-lhe a areia da roupa.

– Como está gelado! – Repreendeu. – Agora baixe-se. – Caleb inclinou-se para frente para ela puder alcançar-lhe o cabelo. Sacudiu-o com energia.

– Está uma lástima! Logo um cabelo tão jeitoso!

– É à surfista. – Disse o homem como se explicasse tudo.

Obrigado a olhar para baixo enquanto esperava que a mulher terminasse, Caleb olhou de lado e depois virou a cabeça para ver melhor. Havia sulcos na areia, inclusive um rasto na areia. Quando se endireitou, lembrou-se de dizer:

– Obrigado. Se não me tivessem puxado para cima… – Apontou para a maré alta. – Estava agora a tomar banho, certamente. – Os outros entreolharam-se.

– Não fomos nós. – Corrigiu o homem. Por momentos, fitaram-se num silêncio.

– Bem, é escusado ficarmos aqui parados. – Retorquiu a senhora da mercearia com as mãos nas ancas e iniciaram o caminho de regresso. Caleb voltou a desviar-se para o lado para se afastar do perfume da mulher.

– Já alguma vez lhe contei a lenda de Ariana, a Sereia? – Perguntou ela. O homem revirou os olhos.

– Lá vamos nós outra vez.

– Segundo a lenda – Começou a mulher sem esperar por incentivos. – Ariana foi amaldiçoada pelo deus Poseidon, o Senhor dos Mares, por ter recusado o seu convite para fazer parte da corte e cantar para ele. Deu-lhe serpentes marinhas como cabelos para destruir a sua beleza e tornou a sua bela voz numa arma mortal, trazendo morte em vez de prazer para quem a ouvisse. Prendeu-a ainda à ilha, impedindo-a de explorar os Setes Mares.

– Serpentes na cabeça? – Questionou Caleb.

– Uma maldita Medusa aquática – Retorquiu o homem aborrecido.

Uma Palavrinha de Aviso

Mais tarde, mais quente e anestesiado, Caleb esperava que a chávena de chá fumegante arrefecesse. Ao lado, duas torradas cortadas em tiras emanavam o aroma aconchegante e nostálgico a pão quente com manteiga que a mãe costumava fazer sempre que estava doente. Agitou a saqueta de chá distraidamente O café era espaçoso com uma vista esplêndida para o mar. Conseguiu um lugar junto a uma janela entreaberta por onde uma brisa marítima entrava e recordava-o da noite passada.

– Posso sentar-me? – Caleb olhou para cima e viu um polícia, o Chefe Devin. Aliás, Chefe David, corrigiu-se ao ler a placa de identificação. Indicou-lhe o banco vazio à sua frente. Aquilo pareceu alimentar o burburinho dentro do café.

– O costume, Chefe? – Questionou a jovem empregada atrás do balcão. Caleb pegou na chávena de chá e começou a soprar. Com um sorriso familiar, o polícia respondeu:

– Sim, por favor. – Esperou até fazer contacto visual com Caleb para voltar a falar. – Então, é o senhor que tem permanecido na nossa vila. Admira-me que tenha conseguido arranjar alojamento por tanto tempo.

– Tive de oferecer um rim para deixarem-me ficar. Mas pela vista… – Fez um gesto na direcção da janela. – Valeu a pena.

– É um local encantador. – Concordou o Chefe. – Mas os parcos visitantes que conseguem estabelecer-se aqui apenas são tolerados se cumprirem as regras.

– Está a referir-se ao recolher obrigatório. – Que tão obviamente mandara às urtigas, na noite passada.

– E à protecção dos ouvidos. – O Chefe pousou os braços cruzados sobre a mesa e aproximou-se. Caleb conseguiu perceber que o pessoal no café ficou em silêncio, à escuta, mas não foi isso que reteve a sua atenção. – A última coisa que esta vila precisa é a morte de um turista casmurro.

Mal sabia ele que Caleb já suspeitava ser um homem morto. Não que o quisesse admitir.

A jovem empregada aproximou-se com o pedido, o que fez com que o Chefe endireitasse e adquirisse uma postura menos autoritária. O aroma da fatia de tarte de amora e do café elevaram-se entre eles. Será que eles sabiam da existência da sereia e era por isso que insistiam tanto naquelas regras?

– Não acho que tenha percebido qual era o seu nome…?

– Caleb.

– Bem, Caleb, a noite passada não é para se repetir. – Perante o olhar aborrecido do polícia, Caleb manteve a boca fechada e não fez quaisquer perguntas.

Nuvens negras aglomeraram-se no horizonte à medida que a tarde avançava. O vento gelou e acelerou, imperioso. O mar agitou-se e atirou-se com crescente violência contra a falésia. Quando a noite caiu, a tempestade estava instalada.

No minúsculo quarto de hotel, Caleb fitava os auscultadores sentado na cama. O próprio dono do hotel andava de hóspede em hóspede, outra vez, a insistir no uso das protecções. Era noite de lua cheia, sussurrou aterrado várias vezes. Mas Caleb interrogava-se: o homem estava preocupado que um dos hóspedes morresse ou que um deles fosse encontrado morto num dos quartos do hotel? Girou o objecto nas mãos, indeciso, matutando no medo que girava em redor da sereia e da sua voz. Por cada um que dizia que a voz era bela e um encanto de ouvir, Caleb perguntava se já a tinha ouvido. Estou vivo, não estou? Era a resposta que recebia de imediato. Houve quem o olhasse com atenção, como se duvidasse que compreendia as regras. Mas como podiam dizer quão bela era a voz da sereia se tapavam os ouvidos? Por outro lado, tanto medo tinha de ter algum fundamento, certo? Ele próprio viu a sereia na noite passada. Ariana, era o nome dela, de acordo com a lenda local.

Fitou os auscultadores até que, com um suspiro resignado, colocou-os. Não que achasse que fosse fazer a diferença. Com os uivos do vento, as explosões do mar contra as rochas e a chuva a bater com força contra a janela, duvidou que ouvisse o quer que fosse. Mas detestaria mentir se alguém perguntasse alguma coisa. Principalmente, depois de ter sido apanhado.

Caleb encostou-se ao estrado da cama e pegou no policial que estava sobre a mesa-de-cabeceira. Fez por esquecer a tentação de ouvir o canto da Ariana. Não foi fácil: não conseguiu acompanhar o desenrolar da história, o silêncio artificial incomodava-o e os auscultadores obrigaram-no a dormir de barriga para cima.

O Impulso Mal Calculado

O reencontro não aconteceu. Nem na noite seguinte, nem na outra a seguir, quando Caleb voltou a ser apanhado na praia depois do anoitecer sem os malditos auscultadores. O Chefe David nem esperou pela manhã para repreendê-lo e ameaçá-lo em ser exportado da ilha. Escoltou-o inclusivé até ao hotel. Envergonhado por tal e frustrado por não ter visto a Ariana, Caleb passou a noite num sono inquieto e pouco reparador. No dia sequente, ainda desapontado, decidiu-se por um dos percursos pedestres da ilha para se afastar da vila. Sob um sol forte e brilhante, foi comprar comida e água com a intenção de fazer um almoço tardio algures no percurso. A senhora rechonchuda da mercearia, percebendo os seus planos, não se poupou a mais avisos. Caleb reconheceu a preocupação nos olhos da mulher, mas a atitude proteger-mas-ignorar-a-fonte-do-problema apenas alimentou-lhe a irritação.

– Porque é se deixam viver neste terror constante de ouvir inesperadamente a voz da Ariana? – A mulher apenas encolheu os ombros. Depois, como se tivesse percebido que o gesto era insuficiente, acrescentou:

– Eu investi todas as minhas poupanças nesta mercearia.

Mal se viu no percurso que escolheu, Caleb carregou no passo, como se a irritação pudesse sair-lhe pelos pés. Não havia mais ninguém e o silêncio apenas era quebrado pelos gritos das gaivotas, pela rebentação das ondas e pelos seus passos na terra batida. O percurso que escolheu fê-lo acompanhar a linha da falésia. A vegetação era rasteira e na sua maioria era arbusto de folha feia, mas a vista do mar compensava o exercício. Passo a passo, Caleb foi-se sentindo cada vez mais calmo e relaxado. A dada altura parou para almoçar. Distraidamente observou, entre dentadas na sandes, a nitidez com que se via o continente, enganando ao insinuar que a civilização moderna estava já ali ao lado.

As dores na zona abdominal foram como um balde de água fria. Olhou preocupado para o relógio de pulso, que pertencera ao pai. O efeito dos comprimidos estava a terminar mais cedo do que o habitual. Procurou por eles na mochila com movimentos cada vez mais frenéticos até se recordar, horrorizado, que os deixara no quarto. Aquilo reacendeu a irritação e, bufando, pôs a mochila às costas para dar meia volta e regressar à vila. Mas algo fê-lo estacar e tirar o mapa do bolso. Foi a sorte dele, pois constatou que estava mais perto da vila indo em frente. Soltou um suspiro longo para se acalmar e voltou a dar outra meia volta.

Numa parte em que o caminho serpenteou para mais perto da beira da arriba, uns arbustos revelaram alguns degraus de cimento. Curioso, Caleb aproximou-se e notou que havia uma escada incrustada na falésia. Não parecia descer até a uma praia isolada, pois desaparecia por entre as rochas, lá em baixo. Havia um corrimão feito de corda. Hesitou. As dores abdominais, sempre no lado esquerdo, não eram muito intensas, mas moíam-no ao ponto de saber que o resto do dia seria reservado a descansar no quarto. Olhou para baixo e depois para o caminho que tinha pela frente. Esperou que não estivesse demasiado longe. Aliás, seria só uma espreitadela e regressaria logo a seguir.

A escadaria, composta por três lances e dois pequenos patamares, levou-o até a uma gruta que desembocava numa pequena praia. O tecto afunilava para uma abertura arredondada e havia uma rocha do tamanho dele no meio do areal, no lado direito. Ali, estava frio. Caleb arrepiou-se, movimento esse que veio atiçar as dores abdominais. Não podia mesmo demorar-se.

Um chapinhar inesperado fê-lo disparar o olhar na direcção do som. Caminhou até à água e viu alguns peixes a nadar em cardume ali perto. Ao voltar-se, viu um vulto estendido e semi-escondido pela enorme rocha. Caleb aproximou-se e depois estacou.

Ariana estava de costas para ele. Os arranhões e nódoas negras na pele branca contrastavam horrivelmente com a imagem de pele perfeita que imaginara que ela tivesse. Havia um tecido acinzentado e coçado enfaixado com várias voltas em redor do tronco. Numa mescla macabra de fascínio, de garganta apertada, de não querer desviar o olhar, de saber que devia agir sem de imediato saber como, Caleb admirou o tom azul das escamas da cauda, encontrando mais feridas e até escamas em falta. O cabelo longo era negro e aparentava estar seco e ondulado. Tapou a boca aberta com a mão. Nele, havia pedaços de algas e várias serpentes marinhas, de um inesperado branco, imóveis.

Aproximou-se devagar e contornou-a para ver se estava acordada. Não estava e viu o golpe na testa, que evidenciava inchaço e um rasto de sangue seco pelo rosto. Tirou a mochila das costas e abriu-a, apenas para confirmar que não tinha nada útil para aquela situação. Hesitou apenas por segundos antes de tirar a t-shirt e ir molhá-la no mar. Regressou, ajoelhou-se ao lado da sereia e tratou de remover o sangue seco em redor do golpe com movimentos suaves. Engoliu em seco ao ver o peito saliente meramente coberto pelo tecido gasto, e obrigou-se a focar na ferida. Sentiu-se aliviado ao ver que não era um golpe fundo. Levantou-se para ensopar novamente a t-shirt que adquirira tons carmim.

Para uma criatura marinha, seria de esperar que não batesse com a cabeça nas rochas, pensou ao lavar a t-shirt no mar. E com esse pensamento recordou-se da tempestade violenta que abatera sobre a ilha dias antes. Ariana deve ter sido surpreendida com as ondas violentas e atirada contra as rochas, deduziu horrorizado. Levantou-se, virou-se e paralisou onde estava.

Ariana fitava-o. Sob a luz do entardecer, os olhos dela pareciam irreais; a íris era de um azul tão claro que tornava difícil desviar o olhar. Excepto quando se tinha, pelo menos, meia dúzia de serpetes a fitá-lo.

Um arrepio gelado atravessou-o. Mal registou as dores novamente atiçadas. Apenas esperava uma coisa: ser transformado em pedra. Fitaram-se. Nada aconteceu. Caleb passou a mão pelos cabelos e coçou a cabeça com movimentos lentos e cautelosos.

– Como te sentes? Tens aí um golpe feio. – Apontou para a sua própria testa.

O silêncio manteve-se.

Foi nesse momento que Caleb notou que a sereia já não se encontrava no local onde a encontrara. Estava mais próxima da água. Deve ter rastejado enquanto ele estivera de costas para ela. Entristecido por ser, mais uma vez, visto como uma ameaça, Caleb limitou-se a virar costas e caminhar para longe. O som de um mergulho fê-lo olhar para trás. Suspirou desiludido.

Espremeu o excesso de água da t-shirt e vestiu-a. O novo tom carmim não o incomodava, mas o ténue cheiro metálico do sangue deixou-o enjoado e desejoso de regressar. Foi buscar a mochila junto à rocha e já se encaminhava para a escadaria, quando uma voz tímida ecoou na pequena gruta:

– Obrigada. – Quando se voltou, já só viu a ponta da cauda a desaparecer na água. Mesmo assim fê-lo iniciar a subida com um sorriso e olhos sonhadores, esquecendo o desconforto da t-shirt suja e das dores. Já só desejava encontrar uma forma para não voltar a ser apanhado na praia à noite para puder voltar a falar com ela. O entusiasmo e o primeiro lance de escadas deixaram-no sem fôlego. Caleb ignorou as pontadas da odiada dor de burro. O sol já ia avançado, deixando aquela zona, tapada pela própria falésia, na sombra. Estava a levantar o pé para subir do segundo para o terceiro degrau do lance de escadas seguinte, quando uma dor excruciante explodiu-lhe em toda a zona abdominal.

A intensidade apanhou-o desprevenido e fê-lo pisar mal o degrau. Caiu. Uma nova dor forte veio do braço direito que usou instintivamente para proteger a cabeça na queda. O corpo pareceu querer paralisar face às dores, mas era-lhe impossível não respirar. Vendo a saliência do degrau tão de perto, Caleb apercebeu-se do quão perto teve de bater com a cabeça e ter um traumatismo craniano. E ali, ninguém iria procurar por ele. Os seus pais, sim. Se Caleb morresse, será que eles estariam à sua espera?

Com o coração angustiado, obrigou-se a respirar lenta e profundamente. As lágrimas correram livres. Deixou-se envolver pelo som do mar e, paciente, esperou até se sentir um pouco mais forte. Quando achou que conseguia, tentou pôr-se em pé e descobriu que o pior ainda não tinha passado: tinha as pernas fracas. Subiu as escadas com o olhar e depois para o céu. A impotência ameaçou derrotá-lo. Depois recordou-se que tinha o número do táxi, o único da ilha, e tirou o telemóvel da mochila com movimentos lentos. Com algumas lágrimas de alívio, prometeu a si mesmo que apanharia boleia até ao hotel e ficaria lá, quieto e sossegado.

De Volta À Arena

Considerava injusto que o mar permanecesse calmo, quando todo o seu ser revoltava-se e exigia justiça. A noite estava negra, tal como o seu humor, com a excepção da lanterna a gás que trouxera consigo. Os auscultadores repousavam no pescoço, ignorados. Se fosse verdade que o canto da sereia fosse mortal, então que Ariana cantasse! Estava farto!

Caleb deixou-se cair numa posição fetal sobre a toalha de praia. Cerrava um dos punhos em redor de uma carta, como se o mero gesto pudesse alterar o seu conteúdo. Talvez fosse melhor reler; talvez o médico tenha analisado mal os resultados; talvez houvesse um engano que passou despercebido a todos. Desenrolou a carta.

Tinha-lhe sido enviada pelo médico de família, que exigira novas análises ao sangue depois de saber do episódio na falésia. Caleb olhou para os familiares parâmetros: dois marcadores específicos que detectavam actividade cancerígena no corpo. Os resultados estavam muito acima do intervalo de valores que garantiam boa saúde. Tornavam real o seu pior pesadelo: o cancro no pâncreas tinha regressado.

Lágrimas grossas rolaram-lhe pela cara abaixo. Fungou e tirou um lenço do bolso das calças para se assoar. Não era justo. Depois de tudo por que tinha passado, simplesmente não era justo. Olhou para a carta e com um impulso irracional, amachucou-a com raiva numa bola tosca, sentou-se, e atirou-a para o mar. A carta foi cair na areia molhada, a centímetros da água salgada. Soltou um grito de raiva estrangulado e um soluço escapou-lhe dos lábios. Escondeu a cara nas mãos. A seguir passou-as pelo cabelo e depois agarrou-o, enquanto deixava as lágrimas caírem.

O som do papel a ser desenrolado assustou Caleb; abriu rapidamente os olhos à procura da ameaça. Num misto de alívio e incredibilidade, viu Ariana deitada não muito longe dele. Limpou as lágrimas à pressa, mas a sereia, que chapinhava com a cauda nas ondas baixinhas, focava-se somente na carta e procurava um bom ângulo de leitura. Acabou por se deitar de costas para a luz do candeeiro iluminar melhor a carta. Parecia que estava a ler. Não, corrigiu-se. Ariana estava a ler. Embora a vergonha o tenha feito corar pelo mau julgamento, depressa ficou irritado com o olhar que a sereia lhe lançou.

– Escusas de fingir que estás triste por mim.

– Não estou. – Caleb, não compreendendo, sentiu o ego magoado. Ariana prendeu a carta na boca, ergueu-se e arrastou-se para se aproximar dele. O movimento permitiu a Caleb ver que o golpe tinha degenerado numa nódoa negra.

– Curaste depressa. – Quis constatar agradado, mas a voz saiu ciumenta. Quis desaparecer com a vergonha redobrada. – Onde é que aprendeste a ler? – Questionou com mais calma, ocupando-se em passar a mão pelo cabelo, em vez de olhar para ela. Ariana tirou a carta da boca e respondeu:

– Com a minha família de humanos.

– Família de humanos? – Deixou Caleb escapar, surpreendido.

– Sim, fui adoptada por eles depois de me encontrarem em pequena. – Revelou Ariana com uma voz cheia de saudades. – Não devias estar com a tua família? Os teus pais?

Caleb estendeu o braço e prendeu a carta entre dois dedos. A sereia abriu a mão e deixou que ele a tirasse. Lançou-lhe um olhar rápido antes de fingir que relia a carta.

– Os meus pais estão mortos.

– Os meus também.

– Os humanos?

– Sim. – O silêncio caiu entre eles.

Quando Caleb ouviu o diagnóstico pela primeira vez, o médico tinha-lhe dito que tinha boas hipóteses: era jovem e havia sido detectado num estado ainda precoce – algo muito, muito raro com um cancro no pâncreas. Mas não tornou a batalha menos dura, nem para ele, nem para os pais dele. Sentiu um aperto do coração que ameaçou sufocá-lo. Os pais estavam mortos. Ele não tinha mais ninguém. Olhou para Ariana. Observavam-no, ela e as serpentes.

– São venenosas?

– Não. – Foi a resposta surpreendida.

– Hum…

– Posso cantar. – Caleb virou-se para ela. Que estúpido, tinha-se esquecido. – Queres? – Ao invés de responder, ele limitou-se a esfregar a cara. Se morresse agora, podia estar com eles. Bastava deixá-la cantar e em instantes deixaria de estar sozinho.

Metia-lhe medo reviver as terríveis memórias da quimioterapia. Nos momentos em que parecia que o corpo ia sucumbir por causa da cura ao invés da doença, o pai, recordava-se, fazia-lhe ver que desistir não era opção. Era preciso lutar pela vida. E se ele tivesse ouvido aquela conversa ter-lhe-ia ferrado os ouvidos com um sermão longo sobre como, na família dele, nunca houve homens fracos e muito menos começaria com o filho dele. Parecia que o ouvia dentro da sua cabeça e riu-se divertido com a visão agridoce.

Olhou para Ariana, que tinha uma sobrancelha levantada e um olhar ofendido.

– Acho que desistir não é opção. – Recordou, na sua mente, as lágrimas silenciosas no rosto da mãe, convencida que ele dormia na cama de hospital e que não estaria a ouvir as preces para que ele fosse forte o suficiente para resistir à tentação de simplesmente morrer. A emoção e a saudade sufocaram-no. Sabia o que o esperava e isso aterrorizava-o, mas não podia correr o risco de desapontar os pais, onde quer que estivessem.

Caleb inspirou de repente com força e um gemido de dor involuntário escapou-lhe dos lábios. Ariana ergueu-se, alarmada.

– O que se passa?!

– Nada de novo. – Respondeu ele com uma voz estrangulada, massajando inutilmente a barriga.

Sem Pensar em Consequências

Conseguiram segurá-lo no hospital durante três longos dias antes de Caleb, ansioso por liberdade, assinar os papéis de responsabilidade. Recusava-se a ficar quieto numa cama de hospital à espera de morrer. Não que tivesse energia para subir uma montanha; o cancro estava a crescer depressa.

Uma vez na rua, respirou bem fundo, grato pelo ar fresco e pelas dores anestesiadas. Avançou até ao táxi, que largava um velhote de bengala, e deu-lhe a morada do hotel. Ao entrar no carro, viu-se envolto pelo cheiro adocicado a pastilhas elásticas e rebuçados de mentol. Deu-lhe logo comichão no nariz. Sorriu educadamente para o taxista, que estava entusiasmado para falar, e abriu discretamente a janela.

O duche estava no topo da lista. A seguir, muniu-se para uma estadia prolongada na praia: lanterna a gás, toalha de praia, um livro, os malditos auscultadores e uma ida ao café para se abastecer de sanduíches. Ainda faltavam algumas horas para o recolher obrigatório e o sol ainda prometia algum calor. Evitou estender a toalha demasiado perto do mar, não sabendo se subia ou descia. Inspirou a brisa e soltou um suspiro satisfeito. Tirou o livro da mochila e sentou-se. Desta vez, era uma história de terror.

Precisamente no momento mais tenso, uma mão pressionou-lhe o ombro, assustando-o. Era o Chefe David e o seu habitual sorriso descontraído. Caleb deu-lhe um sorriso amarelo.

– Tem andado desaparecido, amigo. Soube que tem estado no hospital. – Caleb colocou o marcador no livro e fechou-o.

– A Dona do café trabalha depressa.

– Isto é um meio muito pequeno e pouco acontece aqui para manter os locais entretidos.

– É de admirar, tendo em conta que a ilha é um posto de turismo quase obrigatório.

– Fazemos questão de manter as novas tendências longe das nossas tradições. – Depois, ficou com uma expressão mais reservada. – Espero que não seja muito grave…?

– É grave o suficiente. – Afirmou Caleb vagamente. – Puxe da toalha, Chefe, se quiser.

– Eu cá aceito. Ah! – Olhou para as coisas dele. – Vai passar aqui o resto da tarde?

– Apenas algumas horas. – Mentiu ele. – Não me esqueci das regras, Chefe. Mas depois de ter estado fechado no hospital, faço questão de permanecer na rua até puder. – A última coisa que queria era ser obrigado a regressar tão cedo; oportunamente, o outro anuiu em silêncio.

– Tem os auscultadores?

– Não é lua cheia, Chefe. – O homem ergueu uma sobrancelha.

– Talvez não devesse dar ouvidos às histórias de velhotas, amigo. Acha que perderia tempo a dizer-lhe para usar os auscultadores, se não fosse mesmo necessário? – Aquilo fez Caleb sentir-se um imbecil. Enfiou a mão na mochila, tirou de lá os auscultadores e colocou-os ao pescoço.

– Já alguma vez a viu?

– Não e nem quero ver. Dizem que tem a cabeça da Medusa, cheia de serpentes. Ainda nos transforma em pedra também. – Mostrou-se desagradado com a ideia. – Quando fui destacado para este sítio, já não restava ninguém da família que a acolheu e apenas resta uma casa abandonada como prova da veracidade da história. Se é que se pode chamar isso uma prova.

– Onde é que é essa casa abandonada? – O Chefe fez um gesto geral para o lado oposto da vila.

– Fica para aqueles lados. – Depois olhou seriamente para Caleb. – Mas não é segura. Há décadas que a madeira está a apodrecer. – Levantou-se. – Espero bem não apanhá-lo aqui depois de anoitecer. Não haverá perdão desta vez.

O céu alaranjava. Caleb pousou o livro e desembrulhou uma das sanduíches, que levava queijo e presunto. Empurrou-a com um chá de uma mistura de ervas que a Dona do café tinha insistido que levasse. Surpreendido por gostar, foi bebericando o chá, enquanto observava a praia à sua volta. Um grupo de rochas perto da linha da falésia atraiu-lhe o olhar. Mais tarde, quando a lua minguante já estava acima da linha do horizonte e o Chefe David passou pela praia, Caleb escondeu-se entre elas.

Ouviu mais do que viu os movimentos na água e virou-se para o mar. A ponta de uma cabeça apareceu. Voltou a mergulhar. Caleb olhou para a lanterna de gás e decidiu ligá-la. Ajeitou o botão para que a luz ficasse no mínimo. Quando voltou a olhar, Ariana fitava-o à beira da água.

– Pareces mais magro. – Não foi um elogio.

– Comida de hospital no seu melhor.

– Foi por isso que deixaste de aparecer? Estiveste no hospital? – Era alívio o que ele ouvia na voz dela?

– Sim. – Ariana observou-o atentamente. Aproximou-se, arrastando-se para ficar de frente para ele.

– Como é que a vossa tecnologia não é capaz de erradicar o cancro? – Caleb limitou-se a encolher os ombros. Isso pareceu enfurecê-la. Bateu com a cauda com força na água, salpicando-o.

– Pensei que não quisesses morrer!

– E não quero! – Deixou a resignação e a frustração fluírem na voz. – Mas o médico foi claro: o cancro regressou e avisou-me que os tratamentos de quimioterapia podiam, quanto muito, impedir que o cancro se espalhasse pelo resto do corpo. – As serpentes agitaram-se por entre o cabelo molhado.

– Tem que haver uma solução! – Exclamou decidida. Uma emoção brotou inesperadamente do peito dele e deixou-o com um nó na garganta. Há muito tempo que não sentia a preocupação genuína de alguém por ele. Fechou os olhos e encolheu os ombros num gesto instintivo, quando Ariana atirou-lhe com água.

– Então?!

– Estares aqui não vai piorar o que tens? Não devias estar no hospital a fazer tratamentos? – Caleb voltou a encolher os ombros.

– Interessa apenas o que eu quero. E eu quero estar aqui, contigo. – As serpentes estacaram como que surpreendidas, e fitaram-no, tal como a própria Ariana. Desta vez, era uma imagem desconcertadamente bonita.

– Porquê? Porque queres estar aqui, quando há tantos que odeiam o que sou?

– Olha, porque não esperava ver uma sereia e muito menos conhecer uma. E agora que vejo e conheço, quero aproveitar o momento. – Os olhos delas abriram-se muito com as palavras dele.

– Não tens mesmo família? – Voltou a perguntar. – Ninguém com quem possas estar?

– Não.

– Devias de regressar. – Disse ela bruscamente. Caleb virou-se para ela surpreendido e viu quão furiosa estava. As serpentes abriram as bocas de forma ameaçadora. – Podes não ter grande interesse em cuidares de ti, mas se morreres aqui, quem leva com as culpas sou eu. – E arrastou-se para regressar ao mar, ignorando Caleb, que a chamava de volta.

– Não me deixes sozinho. – Suplicou baixinho, mas o mar limitou-se a ficar em silêncio.

Vingança de Longa Data

– Alguém levantou-se tarde. – Cumprimentou a jovem empregada que tinha um sorriso excepcionalmente grande naquela manhã. Caleb levantou a sobrancelha, curioso.

– O que vai ser, querido? – Perguntou a Dona do café, que seguiu o olhar dele.

– O habitual: chá verde e aquelas torradas recheadinhas de manteiga, como só a senhora consegue fazer. – A mulher sorriu-lhe agradada.

– Senta-te. Mando-te a Madalena com o teu pedido. Quando ela descer à Terra. – Acrescentou com desagrado ao ver a rapariga a entregar pedidos trocados.

Caleb escolheu uma mesa com vista para a rua principal. Àquela hora, o ar murmurava com inúmeras conversas, várias de línguas diferentes, e a vida que ali vibrava alcançou-o. Como queria mergulhar no meio daquele frenesim e esquecer o que se passava. Suspirou. Depois, riu-se. Os suspiros sempre tinham queimado a paciência do pai, quando este tentava ler descansado.

 Alguém puxou bruscamente da cadeira à sua frente e sentou-se. Era um homem grisalho de olhar duro e lábios cerrados numa expressão severa e antipática. Caleb sentiu-se apreensivo pela intrusão.

– Há boatos a circular sobre você andar atrás do monstro da vila. É verdade o que dizem, rapaz?

– Não.

– Então negas os boatos? – O homem franziu a testa, como que insultado.

– O que é que você quer?

– Não acha que o cházinho é para meninas? – Caleb ficou sem palavras. – Uma aguardente velha faria crescer-lhe os pêlos no peito e perder esse ar de rapazeco enfezado.

– O que raio é que você quer?

– Tenho contas a ajustar com aquele maldito monstro.

– Então, vá ajustar contas. – E gesticulou para que se fosse embora.  O homem sacou da carteira e colocou uma fotografia amarelecida de uma menina de sete ou oito anos em cima da mesa. Apontou para ela.

– Estás a vê-la? Aquele monstro tirou a vida à minha filha. – Chocado, Caleb olhou para a fotografia e depois para o homem. As rugas estavam marcadas num rosto que não sorria. Os olhos revelavam o que sabia agora ser uma longa e dolorosa história, contudo chispavam com um brilho que arrepiava, um brilho inumano. Devia ter os seus cinquenta anos, presumiu ele.

– Aquela besta tirou a vida à minha menina. – O sussurro exaltado atraiu olhares curiosos. – Perdi a minha mulher pouco depois. A minha vida tem sido um autêntico pesadelo desde que aquele monstro cantou.

– Lamento que isso lhe tenha acontecido, mas o que é que eu tenho a ver com isso?

– Estou disposto a pagar-te para o matares.

– O quê?! – O homem aproximou-se mais.

– Estou disposto a dar tudo o que tenho para matares aquele monstro.

– Porque haveria eu de fazer uma coisa dessas?! – O homem esmurrou a mesa e apontou para a fotografia.

– Não basta a morte de uma criança?! – Pelo canto do olho, Caleb viu a Dona do café pegar no telefone. Confiando que chamava a polícia, cruzou os braços.

– Porque é que está aqui?

– Mas você é estúpido?! Já lhe disse que quero ver o monstro morto… – Caleb só gesticulou a descartar o que estava a ser dito.

– Se quer ver o monstro morto, mate-o você.

– Não posso! – Bateu com a mão na mesa. – Não consigo vê-lo, ou eu não vinha atrás de um rapazeco para uma coisa tão importante como esta.

– Rapazeco?!

– Parece que continua ignorante apesar do tempo que já está aqui. Eu esclareço-o. O monstro só é visto por quem não tem interesse por ele. A menor curiosidade que seja impede a pessoa de o ver. Eu quero vê-lo para o puder matar, logo nunca conseguirei apanhá-lo por minha conta. Faz parte da maldição.

– E porque é que veio chatear-me? Está a dizer que eu vejo?

– Acha que me engana com as idas à praia e não seguir as regras? Admite. – Inclinou-se para a frente. – Consegue vê-lo. Aliás, pelo aspecto que tem, duvido que aguente tanto tempo como disseram os médicos.

– O quê? – O coração de Caleb afundou-se. Era como uma facada na esperança. O homem encolheu os ombros, mas sorria orgulhoso.

– Não ficaram lá muito satisfeitos por ter saído do hospital, amigo. Só precisei dizer que era seu amigo para dizerem-me o que precisava de saber. E você. – Apontou para Caleb – Você é um homem morto. Pode perfeitamente fazer o que lhe peço para fazer. – O café ficou mergulhado em silêncio.

– É preciso ter lata. Você quer comprar um homem que está a morrer com dinheiro que não vai puder usar só porque não tem a coragem de agir por si mesmo? – Caleb levantou-se enjoado, mas o outro agarrou-lhe o braço.

– Você devia de pegar na pouca vida que lhe resta e fazer alguma coisa de importante! Mate o monstro! Eu fá-lo-ia se pudesse!

– Eu é que decido o que fazer com a vida que me resta. E não vou desperdiçá-la por um cobarde! – Caleb puxou o braço, mas o velho fincou os dedos com mais força. Tinha um olhar enraivecido, que lhe dava uma aparência louca. Caleb sabia que, numa luta, não teria hipótese. Não quando o cancro já lhe tinha devorado metade da energia que outrora tivera.

– Hei, hei, António, o que pensas que estás a fazer?! – A voz autoritária do Chefe David, à porta do café, não mascarou a incredibilidade. Aproximou-se deles imediatamente e colocou a mão no ombro do velho.

– Eu precisava de saber, David. Eu precisava de saber!

– Não me faças arrepender de ter falado contigo. – Lançou um olhar rápido e culpado a Caleb. – Larga-o ou juro-te que passas o resto do dia na cela! – O velho hesitou, mas soltou Caleb com brusquidão.

– Se eu descubro que estás feito com aquele monstro…! – Algumas pessoas começaram a murmurar no café.

– De onde é que veio isso agora?!

– António, está calado! – A voz do Chefe foi como um chicote. – Está na hora de saíres daqui.

– Tenho o direito de estar aqui!

– Não, não tens, António. – Informou a Dona. – Deixaste de ser bem-vindo aqui. Escusas de voltar. – O homem olhou em redor e, como ninguém no café disse uma única palavra, cuspiu para o chão.

– Isto não fica assim. – Vociferou, fitando Caleb. Virou costas e saiu dali. O Chefe David seguiu-o.

O silêncio perdurou por alguns segundos antes de explodir em murmúrios excitados. Os locais entreolharam-se, ignorando os estrangeiros mais curiosos, que tentavam perceber o que se tinha passado. Caleb limitou-se a sentar-se novamente na cadeira, exausto.

Massajou o braço dorido. Tivesse ele de boa saúde e o velho não teria tido a hipótese de o magoar ou a coragem para o ameaçar. Sabia bem que tinha um aspecto cada vez mais frágil e franzino à medida que o cancro avançava galopante. Nem tinha energia para alimentar a fúria necessária para se defender. Quantos semanas, quantos dias teria antes do corpo deixar de ter forças para se manter sequer em pé? O coração continuou a afundar-se.

Uma chávena de chá a ser pousada na mesa trouxe-o de volta ao café. Olhou para a Dona do café, que colocava agora o prato com as torradas. Lançou-lhe um olhar estranho. Caleb não soube compreender se era preocupação ou desconfiança.

– Para o seu bem, é bom que não tenha mesmo qualquer tipo de relação com o nosso monstro amaldiçoado. – A seguir, pegou na chávena de chá e colocou-a à frente dele.

– Porquê? Também vai matar-me? – Respondeu irónica e rispidamente. A mulher endireitou-se. – A senhora ouviu-o: estou a morrer. De cancro no pâncreas. As vossas ameaças não me afetam.

– Não preciso de ameaçá-lo. Quem se aproxima de Ariana, acaba sempre morto.

Um Prato de Sopa

Caleb sentiu-se incomodado o resto do dia. À tardinha, nem tinha bem a certeza se o que sentia era fome ou mal-estar, mas mesmo assim saiu do quarto para se dirigir ao restaurante do hotel. A ameaça deve tê-lo afectado mais do que tinha pensado inicialmente. Mas o que poderia aquele velho fazer contra ele? Por outro lado, e se não fossem meras palavras ocas de um homem afogado em sofrimento? Ponderou nas suas acções dos últimos tempos, enquanto descia as escadas de madeira forradas com um tecido vermelho que abafava o som dos seus passos. Não tinha dito a vivalma que encontrava-se com Ariana, mas a história dos auscultadores e as vezes que foi apanhado na praia à noite não fora propriamente discreto da sua parte. Empurrou uma porta envidraçada e entrou no restaurante do hotel. Estava vazio. Caleb olhou para o relógio e apercebeu-se que era ainda cedo. Mas como que a provar quem tinha razão, o estômago dele roncou.

– Parece estar preocupado, senhor. O dia não foi bom? – De bata branca impecável com mangas dobradas a meio do antebraço, a Chef serviu Caleb pessoalmente. Trazia uma travessa oval e levantou a tampa para revelar uma fumegante sopa de peixe.

O Senhor está no céu. – Repetiu a deixa do pai. – Pode tratar-me por Caleb. – Estendeu a mão e a mulher, agradada, apertou-a.

– Se têm tanto medo do monstro, como é que ninguém o procurou ainda? – A mulher piscou os olhos, perdida. – Se há tanta raiva a fervilhar, como é que ainda não foram atrás dele com forquilhas e tochas? – A Chef, compreendendo, lançou-lhe um olhar divertido.

– Não acho que a forquilha e o fogo fossem boas opções, neste caso. – Caleb fez um sinal com a mão.

– Percebeu o que quis dizer.

– Sim. Porque não lhe faço companhia para o jantar? – Ele sorriu e anuiu, e a Chef regressou à cozinha. Caleb aproveitou o momento para experimentar a sopa. Arrepiou-se. Estava quase, quase tão boa como a sopa que a mãe dele costumava fazer.

Quando a Chef se sentou pouco depois na cadeira da frente com outro prato fumegante nas mãos, Caleb descobriu-lhe uma tatuagem no antebraço direito, semitapada pela bata e que envolvia uma roseira e caveiras. Tatuar o corpo era um ato que Caleb não compreendia, nem aprovava. A mulher viu onde parava o olhar e ignorou a opinião não verbalizada dele.

– Há uns anos atrás, houve um grupo de aldeões que andou à procura da Ariana. Mas não a encontraram. – Provou a sopa e anuiu, satisfeita. – Alguns têm barcos e fizeram rondas durante dias a fio. Mas nunca a encontraram e, pouco a pouco, os aldeões regressaram às suas vidas. Acaba por ser um ciclo. – Encolheu um dos ombros. – Alguém chateia-se, consegue reunir um grupo de buscas, mas como depois não a encontram, acabam por desistir.

– Alguma vez a viu? – A Chef negou com a cabeça ao levar uma colher de sopa à boca. Continuou depois de engolir:

– Reza a lenda que só quem não está interessado na sereia é que a pode ver. Uma das consequências da suposta maldição de Poseidon.

– Mas acredita que é real? – A Chef hesitou antes de responder.

– A minha avó jurava a pés juntos que tinha visto Ariana. Eu nunca a vi, mas claro, na hipotética situação em que o interesse impede-nos de vê-la, eu não tive qualquer hipótese.

– E a criança que morreu?

– Ah, soube disso? Até admira. As pessoas daqui fecham-se em copas; é tudo um grande segredo. – Revirou os olhos. – Mas depois correm a dizer “o nosso monstro amaldiçoado” para os turistas.

– O pai da menina praticamente acusou-me de ser cúmplice da Ariana. – Caleb agitou as mãos frustrado. A Chef suspirou com um ar entristecido.

– O António nunca recuperou da morte da filha e da mulher. Bastou ver o sangue a sair de um dos ouvidos da miúda para encontrar um bode expiatório para a sua morte. – Engoliu outra colherada de sopa. – O que ele não conta é que a criança andava com otites o que, em casos graves, pode levar ao sangramento dos ouvidos.

– Ninguém morre de uma otite…

– Não, mas veio-se a saber que a miúda tinha hemofilia. – Abanou a cabeça. – Foi uma combinação triste de circunstâncias. Provavelmente o sangramento começou durante a noite e no dia seguinte, apesar do esforço dos pais e dos médicos, a criança não sobreviveu à perda de sangue. Mas é como se estes factos não tivessem qualquer relevância; como foi em dia de Lua Cheia…

– A associação não deixou de existir.

– Não, não deixou. – O silêncio caiu sobre eles, enquanto terminavam o jantar. Depois, Caleb apontou para o prato de sopa vazio.

– Posso repetir? – A Chef levantou-se e foi à cozinha.

O Medo de (Não) Viver

Ao contrário da lenda da maldição de Poseidon, os locais não estavam interessados em partilhar que Ariana, a sereia, foi adoptada por uma família de humanos.  Não havia, perto da casa de madeira, quaisquer placares de informação como já vira noutros pontos turísticos da ilha. Também não havia fitas a limitar o acesso à propriedade, como se contassem com o próprio bosque – extenso e afastado da vila, para manter os turistas afastados. Os vidros das janelas estavam baços de sujidade e muitos deles partidos. A madeira, outrora bem tratada e que terá tornado a casa parte do bosque que a envolvia, estava agora ressequida e áspera ao toque, como uma árvore tombada. Havia um alpendre que se estendia desde a entrada da casa até às traseiras. Aí, o chão encontrava-se suspenso sobre um pequeno lago. Um aroma misto de madeira húmida e a algas marinhas situava a casa naquele lago há muito, muito tempo.

O corrimão do alpendre tinha uma falha e Caleb baixou-se e lavou a cara para se refrescar. Surpreendido, constatou que era água salgada. Devia haver uma ligação algures entre aquele espaço sossegado e o mar. Será que o casal que adoptou Ariana construíra aquela casa de propósito por causa dela? Descalçou-se e mergulhou os pés na água fresca. Se tivesse aparecido ali meses antes, teria arriscado um mergulho para explorar aquele canal. O telemóvel alertou-o para tomar os comprimidos.

Um vulto escuro no fundo do lago chamou-lhe a atenção. Circulou duas vezes antes de se aproximar do alpendre, fazendo Caleb encolher as pernas num ápice para tirar os pés da água. Quase logo a seguir voltou a mergulhá-los, pois apercebeu-se que era Ariana a emergir. Ver o olhar surpreso e o sorriso instantâneo que iluminou o rosto da sereia deixou Caleb deleitado. Observou-a enquanto se içava e se sentava ao lado dele.

– Andaste desaparecido outra vez! – Inclinou a cabeça, observando-o atentamente.

– O que foi?

– É a primeira vez que te vejo de dia. Pensava que tinhas cabelos negros como eu.

– Não, são castanhos. – Corrigiu Caleb a sorrir. – Como os meus olhos.

– Também estás mais magro desde a última vez que te vi.

– Isso já é o cancro a comer-me por dentro. – Disse Caleb a tentar fazer uma piada, mas o sorriso de Ariana esmoreceu.

– Tens estado no hospital? – Caleb negou.

– Não sabia se era seguro aparecer. – Esclareceu e contou-lhe sobre o que se tinha passado no café.

– É verdade, sabias? – Ele virou-se para Ariana. Notou o olhar cabisbaixo, a quietude das serpentes e o brincar com as mãos. – Essa menina foi a minha primeira vítima. Na altura, ninguém sabia o que se passava, nem mesmo eu. – Caleb não respondeu de imediato. Ariana parecia estar convencida no que dizia.

– Ainda que o pai dela acredite, já me disseram que foi doença e não a tua voz que matou a menina. – Ariana olhou para ele surpreendida.

– Mas o pai dela…

– Talvez não queira admitir que foi negligência parental que lhe matou a filha. – Ariana abanou a cabeça.

– Não acredito que o ódio que o homem me tem seja só porque não quer aceitar as culpas.

– Então, sempre que cantas e alguém te ouve, essa pessoa morre?

– Sim. Acho que sim. – A sereia franziu o sobrolho, agora com a dúvida a revelar-se depois do que foi dito. – Quero dizer, é o que eu oiço os pescadores dizerem. Não costumo saber que alguém está a escutar-me até saber da notícia da sua morte. – Caleb fitou-a com uma sobrancelha erguida.

– Sabes que os pescadores têm a mania de exagerar nas histórias que contam, não sabes? – Ela suspirou.

– Se exageram. Mas não exageram quando dizem que a minha voz mata. – Levou as mãos ao cabelo para brincar com ele. Recusou-se a olhar para Caleb, que também não sabia o que dizer ou pensar. A verdade é que ele temia mais o velho com a sua vingança do que Ariana com a sua voz mortífera.

– Mataste assim tanta gente, como dão a entender?

– Algumas pessoas… – Ariana abanou a cauda, deslizando-a para a frente e para trás, criando um som de água calmo. Acariciava uma das serpentes com movimentos gentis; outras roçavam-lhe na mão.

– Será que não há mesmo uma forma de ficares como dantes?

– Se calhar nunca houve um antes. Se calhar sempre fui assim e ao crescer desenvolvi os meus talentos. – Acrescentou com ironia.

– Quando é que a tua voz ficou assim? Aos dezassete? – Ela anuiu. – Se calhar, tens razão.

– O quê?

– Se calhar, faz simplesmente parte de ti. E tu já sabias disso, mas preferes ignorá-lo. Há quantos anos andas “à procura” de uma solução?

– Não tens o direito…

– Eu tenho o dever de te chamar a atenção, Ariana! Se esta voz faz parte de ti, aceita-o! Não é isso que te define como um monstro!

– Como é que não define?! – A voz disparou furiosa. – Não consigo controlar a vontade de cantar. Nem pretendo fazê-lo. Adoro cantar. – Confessou como se admitisse algo profano. – Eu sou um monstro, porque não tenho intenções de parar de cantar! – Ariana inclinou-se para a frente para tomar o impulso para saltar para a água. Caleb segurou-a pelo braço.

– Então porque não partes? Porque não te entregas ao canto numa ilha isolada já que matar incomoda-te?!

– Porque…

– Porque tens medo! Em vez de enfrentares o mundo, ficas aqui e metes toda a gente em perigo, incluído a ti própria! – Algumas serpentes sibilaram e ergueram-se. Caleb soltou-a a tempo de não ser mordido.

– Porque aqui não podem fazerem-me mal! E acusas-me de ter medo de viver, quando tu tens medo de morrer sozinho!

– O quê?!

– Tens medo de lutar pela tua própria vida só porque já não tens os teus pais ao teu lado e acusas-me a mim por não querer sair da ilha?!

Um som que pareceu um tiro de um canhão brotou de repente no ar. Um projéctil passou entre Caleb e Ariana. Os dois viraram-se. O velho apontava-lhes uma caçadeira. Caleb sentiu-se tão gelado ao ver a arma que nem levantou as mãos no gesto habitual de rendição.

– O que pensa que está a fazer com isso?!

– Como te atreves a relacionar-te com aquele monstro?! – A voz saiu baixa como um lobo que rosna antes de atacar. Um movimento no canto do olho fez Caleb olhar para o lado: Ariana tinha desaparecido. O velho voltou a disparar, a bala atravessou a zona onde Caleb olhava.

– Está morta?! – Exigiu saber. Com um sorriso que sabia que não lhe chegava aos olhos. Caleb levantou-se e respondeu.

– Não. Ela desapareceu. – O velho apontava-lhe agora a caçadeira. – Pensa matar-me também? – Em resposta, o velho disparou para o ar. Caleb encolheu-se instintivamente com o barulho ensurdecedor.

– Sempre pensei que seria o cancro a matar-me. – Abanou a cabeça, incrédulo. – O monstro aqui não é a natureza. Não é o cancro, nem são criaturas como a Ariana. Não. – Apontou na direcção do homem. – Aqui, o verdadeiro monstro és tu. Tu. Escolhes. Matar. – Abriu os braços. – Vamos, dispara! Deixa a tua menina orgulhosa com a tua vingança!

O velho estava encarnado tal não era a fúria contida. Agarrou na caçadeira com força. E gritou enraivecido, colocou-a contra o ombro, olhou através da mira e Caleb fechou os olhos.

O que Define um Monstro?

Roupas, um livro e uma bolsa de produtos de higiene estavam sobre a cama desfeita. A luz matinal entrava pela janela entreaberta juntamente com a brisa ainda fresca da noite. Caleb saiu da casa de banho, arrumou a escova e pasta de dentes na bolsa, e começou enfiar o que faltava na mala de viagem.  

Desde as palavras duras que trocara com Ariana ao encontro quase fatal com o velho, Caleb oscilava entre a vergonha, o alívio de estar vivo e a certeza de que Ariana estava certa. Ele, Caleb, tinha medo de enfrentar o cancro sozinho.  Correu o fecho para fechar a mala. Ao lado, estava a mochila com os pertencentes mais valiosos e o livro que ainda não tinha acabado de ler. Sentindo o estômago vazio, pegou na chave e saiu do quarto de mansinho, não querendo quebrar o sossego matinal em que o hotel estava mergulhado.

Desceu as escadas para o pequeno-almoço. O que define afinal um monstro? Ser-se-ia um monstro só com a intenção? Ou o âmago do ser, sendo invariável, era a base do monstro, que ressurgiria mais tarde ou mais cedo? Entrou na sala do pequeno-almoço e o cheiro a pão quente e ovos mexidos atraiu-o logo para o buffet. Foi buscar o prato e os talheres, e serviu-se.

A porta envidraçada abriu-se e Caleb, sentado a espalhar manteiga no pão fresco, cumprimentou o Chefe David com um aceno. O homem aproximou-se.

– Hoje madrugou, amigo.

– Estou de partida. – Depois acrescentou mais para si mesmo. – Não vale a pena adiar mais. – O Chefe olhou para ele sem compreender.

– A ilha tornou-se demasiado pequena para si? – Que raio de pergunta, pensou Caleb.

– Algo do género.

– Sei o que se passou. – Caleb olhou para ele. – Com o António e a caçadeira. Gostava de saber o que é que lhe disse. O António apareceu ontem na esquadra, entregou a arma e partiu para o Continente. – Pausou como se revisse aquele momento, batendo distraidamente com os dedos na mesa. – Parecia um homem diferente. Como se tivesse encontrado algo importante, algo que lhe permitia finalmente fazer o luto pela família… – Caleb nada quis acrescentar e o outro anuiu, parecendo satisfeito. Será que aprovava a sua decisão de não apresentar queixa na polícia?

De regresso ao quarto minúsculo, Caleb deu uma última volta para se certificar que não deixava nada para trás. Com o coração pesado, como sempre acontecia cada vez que partia de um lugar que passara a ter um significado especial, agarrou na mala de viagem, desceu as escadas e fez o check out. Foi simples, rápido e seco, e em minutos Caleb estava na rua.

Soube-lhe bem o sol na cara e sorriu apesar das dores abdominais que os comprimidos já não conseguiam abafar completamente. Caminhou rumo ao porto. Mesmo ao longe, conseguia ver o ferry, que tocava a sirene de chegada, enquanto atracava. O som das ondas a rebentar recordou-o da Ariana. Abrandou o passo e depois parou. Fitou o chão; de onde estava não via o mar. Não a iria procurar para se despedir dela e sentiu-se triste perante a certeza de nunca mais a ver.

Endireitou-se. Inspirou bem fundo, enchendo, por sua vez, o peito de coragem. Exalou e recomeçou a andar, em direcção ao barco, em frente, rumo à quimioterapia e contra o cancro.

Fim

Este conto foi revisto pela última vez e esta revisão foi motivada após a leitura do livro “A Writer’s Guide to Active Setting” de Mary Buckham. Podes ler a versão anterior do conto, se estiveres interessado nas diferenças. O capítulo Vivo e Assim Conheço foi o que sofreu mais alterações. O que achaste?

Se gostaste de Escolher-se Ser, recomendo a leitura de O Astronauta Perdido.